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Entre a ciência e a fantasia: a lenda do homem-mãe
30/10/2013 - 06h59
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CLAUDIA CRESCENTE
DO BANCO DE DADOS FOLHA
DO BANCO DE DADOS FOLHA
Um fato antinatural agitou o pequeno povoado de Lajes, em Alagoas, em 21 de agosto de 1966: um rapaz de 19 anos dera à luz uma menina, em parto normal. Até então considerado um garoto como outro qualquer, o agricultor José João viu seu universo virar do avesso nos dias subsequentes ao parto, acompanhados de perto pelo jornal "Notícias Populares".
A primeira notícia do estranho caso do homem-mãe apareceu em 24 de agosto e contava que o rapaz, havia pouco mais de três meses, percebera um inchaço incomum na barriga e nos seios. Um médico de Palmeira dos Índios, município próximo ao povoado, levantou a hipótese de hermafroditismo, mas o "NP" se perguntava se José João não era, na verdade, uma mulher que sempre fora criada como homem.
Reprodução |
Em 27 de agosto de 1966, o 'Notícias Populares' publicou foto do agricultor José João segurando a filha recém-nascida |
Qualquer que fosse a resposta correta, o problema era que o homem-mãe não queria se assumir como mulher e muito menos se casar com o pai da criança, Neuto Jiló, 17. Não era para menos: José João era famoso por ser grande bebedor de pinga, bom no baralho e exímio violeiro, além de trabalhador forte e requisitado pelos fazendeiros da região. Um homem perfeito para o interior alagoano.
Mas, enquanto afluíam curiosos em massa a Lajes, o rapaz foi cedendo. Em 27 de agosto, o "NP" já noticiava que conseguira extrair dele a verdade: José disse que foi sua mãe, morta quando ele (a) tinha apenas cinco anos, quem lhe vestiu com calças e exigiu que se portasse como homem para o resto da vida. A farsa começou a ruir quando, aos 17, vieram seus primeiros ciclos menstruais; ainda assim, tinha vergonha de assumir seu sexo.
Ninguém no povoado desconfiou de nada durante esses 19 anos, e José continuou a usar sua peixeira e a amansar burros mesmo depois que seus seios começaram a se desenvolver. À reportagem o rapaz (ou garota) contou que usava duas camisas bem apertadas para amassar seus atributos, e até as meninas acreditavam que se tratava de um garoto.
Joana da Conceição --esse era seu novo nome-- ainda não acreditava que era mulher quando se apaixonou por Neuto. "Sabia só que me sentia bem ao lado dele", disse. Quando sua barriga começou a crescer, todos no povoado pensaram que era só mais um caso de verme, comum na região. Recomendaram-lhe purgantes, que José/Joana tomou no dia em que as frequentes dores de barriga ficaram mais fortes que o normal. Foi para o mato aliviar-se, e foi lá que a menininha nasceu.
O que Joana temia era ter de abrir mão de sua liberdade adquirida de ir a bailes, beber pinga, andar a cavalo, tocar viola, e todas essas coisas que os homens podiam fazer à vontade em qualquer canto de Alagoas. Já as mulheres... tinham que casar, e a população de trezentos e poucos habitantes de Lajes passou a pressionar pela união de Joana e Neuto. Este, no entanto, se achava muito novo para o casório.
O caso ficou em aberto, pois o jornal esgotou sua criatividade na cobertura e abandonou o homem-mãe. Ou, pelo menos, até o ressurgimento do personagem quase três décadas depois, em 28 de maio de 1992, agora encarnado em um filipino de 32 anos chamado Carlo. O grávido era enfermeiro em Malaybalay, a cerca de 800 km de Manila, e, ao contrário de José João, sempre se considerou mulher apesar de seu físico masculino.
Homem-Mãe
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No dia 27 de agosto de 1966, "NP" exibia na capa a foto de José João com a filhinha
Dessa vez, porém, tudo indicava que se tratava de um caso de hermafroditismo, e o próprio Carlo contou ter se submetido a uma cirurgia alguns anos antes para retirar o atrofiado órgão masculino e alargar o canal vaginal. O problema da escolha do sexo estava resolvido, mas só no psicológico: os documentos de Carlo atestavam que ele era do sexo masculino, e a Igreja das Filipinas negou-se a casá-lo com outro homem --no caso, o militar de 21 anos Ruel Enriques.
Mas Carlo --ou Diane, como gostava de ser chamada-- não desanimou e continuou a dar entrevistas a todos os jornais e especialmente para a repórter Cynthia de León, do "Daily Inquirer", fonte do "Notícias Populares" nas Filipinas. Mas o futuro marido e a família de Carlo temiam que o assédio prejudicasse sua saúde e, em 1º de junho, o jornal anunciava que o grávido fora sequestrado pela própria parentela.
A fonte do "NP", no entanto, tinha acesso exclusivo à companhia do homem-mãe e relatou alguns dias depois que ele tivera mais uma prova de sua feminilidade: "Espirra leite dos dois peitinhos do homem-mãe" era a manchete de 3 de junho. Estava tudo pronto para o parto, e o jornal já estimulava as apostas dos leitores no sexo do bebê. O prêmio: um walkman.
Folhapress |
O filipino Carlo, então com 32 anos, exibe sinais "de gravidez" |
A previsão era que Carlo daria à luz em 17 de agosto. Até lá, o "NP" continuaria a divertir os leitores com desenhos explicativos sobre a genitália do homem-mãe e com entrevistas a celebridades - foi assim que os paulistanos aprenderam que Sócrates era contra uma lei que permitisse a troca de sexo, e que Clodovil defendia o direito de Carlo de casar-se, dentro ou fora da Igreja.
A festa acabou em 10 de junho, quando se anunciava que o homem-mãe negava a gravidez. Carlo teria inventado tudo para convencer o parceiro a casar-se, e todas as pessoas que disseram ter visto a barriga do rapaz e presenciado sua condição hermafrodita agora tiravam o corpo fora. Ou desmentiam tudo, como fizera uma enfermeira de Malaybalay: "Seu pênis é tão grosso como os meus dois polegares juntos. A vagina que a cirurgia havia criado para permitir a fecundação é tão imaginária quanto a gravidez."
A médica que dissera ter ouvido o coração do nenê batendo confessava: "Carlo se recusou a fazer um exame mais sério. Não vi sequer seus órgãos sexuais." O walkman seria agora sorteado entre todos os leitores do "NP" que ligaram para fazer suas apostas. O jornal fazia sua mea culpa citando outros veículos que também noticiaram o caso, como o inglês "The Sun". Enquanto isso, Ruel e Carlo trataram de desaparecer do mapa, sob ameaça de linchamento. Os moradores de Malaybalay e os leitores do mundo todo estavam decepcionados: parir crianças continuaria a ser, afinal, um privilégio só das mulheres.
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